"Vá tomar banho!"
A voz divina, sinuosa-e-empenada de Quetzalcóatl pareceu emanar do ar para se anidar no ouvido de Nezahualcóyotl, ajoelhado em meditação no templo.
"Vá tomar banho!"
Então: a fazer, porque quando fala a Serpente Emplumada, a gente obedece, e mais o tlatoani dos texcocanos. Imediatamente começou a desenhar um parque, para lá no morro de Tezcotzinco, porque não poderia ser qualquer banho. O tlatoani teria que emular o banho purificativo e meditativo que tomou Quetzalcóatl na sua existência humana, na época em que foi tlatoani dos toltecas. Banho como rito, cerimônia, nascimento, comunhão, até mesmo apoteose.
Durante uns mêses os lavradores transformaram a face do morro. Tomou forma uma série de trilhas, nichos, aquedutos, jardins, todo se abrindo no panorama espetacular que teria Nezahualcóyotl ao se sentar no banho redondo, sítio do rito. O banho tinha saida de água, reta, que fazia nascer uma pequena cachoeira; desse jeito jamais seria banho de água totalmente estancada.
O tlatoani esperou a primeira noite na que apareceu a estrela da tarde no seu ciclo. Quando caiu o sol, Nezahualcóyotl deixou cair sua manta no chão. Começaram nascendo as estrelas como da nudez dele, sagrada nudez que é a forma de qualquer recem nascido. Ele se sentou na tigela do banho, e a água quentinha, preparada ao fogo de lenha de carvalho, começou a cair, vertida pelos ajudantes.
Outros ajudantes colocaram tochas acesas ao lado do banho, mas ficavam perto demais, e o tlatoani mandou que se afastassem tochas, ajudantes, tudo. Só então, com a tranqüilidade aquática, veio uma inundação de inspirações: idéias, imagens, pensamentos e emoções expressadas como flor e canto. O rei enfim descansou, deixando voar a mente pelos detalhes de alguns projetos de lei, outros jardins e aquedutos a desenhar, um hino a Tloque Nahuaque...
E nisso, subitamente desceu, silenciosa, uma garça, se pousando majestuosamente sobre a água do banho. Nezahualcóyotl, admirado, a viu como símbolo de uma epifania...de que o fundamental artístico é a imersão no processo criador contínuo: se fluirem as águas, a garça virá.
Senhor e ave dividiram o banho uns momentos. Quando a garça se foi embora, as longas asas brancas batendo poderosamente no ar, Nezahualcóyotl saiu do banho. Rejeitou as roupas que lhe ofereciam os ajudantes e subiu despido ao cima do morro, seguindo com a vista o vôo da garça pelo Lago Texcoco.
Assim voa o pensamento do sábio, o sentimento do artista verdadeiro, pensou Nezahulacóyotl.
Com raiz na terra assim como eu, desnudo e limpo assim como eu, mas voando pelos céus divinos com o poder da expressão bem feita. Assim é que nós, coitados filhos dos deuses, podemos deixar mais alguma coisa que sobrevive sobre a face da terra, antes de chegar o momento da morte.
Não por muito tempo aqui na terra. Só um momento estamos aqui na terra.
Rei severo porém democrático, mandou que os ajudantes fizessem como ele: que tomassem banho e que subissem o morro nus. Os cinco homens ficaram no cume ate o amanhecer, na vigília dos sonhos mortais.