Escrito como se fosse um trecho perdido e achado de Macunaíma (Mário de Andrade, 1928), lá pelo capítulo XII...
Gritando pelas ruas veio um moleque. Veio o moleque berrando, "Vendo preguiça! Preguiça à venda!"
Jiguê, com fome e com raiva, disse pro benjamim: "Vá por ai."
Mas Macunaíma, primoroso, falou, "Vou à procura da pesquisa da preguiça!"
Seguiu o moleque pelas avenidas e pelos bulevares o dia todo. Enfim achou na Rua Lopes Chaves.
Arfando, de mãos nos joelhos, Macunaíma apenas pôde perguntar, "Qual seu nome, rapaz?"
"Mário."
"Como é que é que 'tá vendendo preguiça? Tinha sabido dessa novidade eu também vendia."
"O senhor tem preguiça também? Onde?"
"Onde a sua! Não estou vendo preguiça nenhuma, não!" O herói estava zangado. "Você vem aqui correndo e gritando, e eu seguindo feito arara maluca!" Assim foi a origem da expressão, 'ficar uma arara.'
O moleque pelou dentes de orelha a orelha e indicou pela avenida. "Lá longe ela vem devagar."
Macunaíma espreitou à distância um pequeno vulto pendurado dos fios elétricos. "Essa preguiça nunca vai chegar."
"Isso," disse o Mário. "A preguiça não chega. Ela só é."
"Então quem vai querer comprar preguiça? Nem dá para comer bem."
"Ela é muito produtiva. O senhor não percebeu que a preguiça é essencial para uma civilização tropical como a nossa?"
"Nada disso, molequinho. Essencial só é comer, brincar, dormir. A preguiça até impede."
O Mário deu uma grande gargalhada. "Pois sim! E o único que sabe fazer a preguiça! De tudo isso ela dá lições. Não perca a oportunidade de compra!" E o moleque tinha razão.
"Me dá em 50 cacaus."
"Cacaus?"
"Não foi você que falou em civilização tropical?"
"Então 200."
"O que é isso? 100."
"150. A preguiça não é barata."
"100! Nem um cacau a mais!"
"Então não vendo não. Vou continuar tomando conta da preguiça."
Macunaíma, muito aborrecido, proferiu uma das favoritas de sua coleção de palavras-feias. Fingiu indiferença e se foi embora. Mas escondeu-se detrás de um poste de luz e esperou que o Mário saisse. Depois foi correndo correndo até onde pendurava a preguiça, já com farta fome, e tirou sua zarabatana. "Fácil que nem pescar com cunambi," disse o herói.
Deu na preguiça, preguiça caiu. Mas, deitada na rua, ela não morreu não, ela crescia e crescia até se tornar o Ai-Pódole, Pai das Preguiças. Ficou do tamanho de um prédio, de garras enormes, rabo como um trem, uma preguiça pré-histórica! Agitou o rabo derrubou um bonde cheio de italianos, alemães, japoneses, bolivianos, espanhóis, libaneses, nordestinos e um caboclo todos numa confusão de pernas pro ar no meio da rua.
Macunaíma ficou estarrecido. Berrou pelo moleque, "Mário! Mário! Olha só a maldição que você fez! Grandíssima bobagem sua civilização tropical!"
Mas o Mário lá estava entre a humanidade oceânica. Respondeu, "De jeito nenhum! O senhor robou, agora a preguiça é do senhor!" E o moleque Mário se foi embora pra fazenda de um amigo em Araraquara, se deitar numa rede compor rapsódia.
Macunaíma olhou pro animal descomunal e coçou a cabeça. "Ai, que preguiça!"
No meio do pavor dos transeuntes e o caos vial apareceram Maanape e Jiguê na procura do herói. No entanto o Ai-Pódole comia tranqüilamente as flores do balcão do sétimo andar do Hotel Versailles.
Falou Maanape. "'Ta vendo, irmão? Essa sua preguiça já cresceu demais." E jogou na ponta da garra do Ai-Pódole um pó mágico que preparasse.
O Ai-Pódole, de supetão, encolheu e encolheu e ia se encolhendo até ficar a preguicinha que vendia o moleque. Maanape era feiticeiro. Então recolheu a preguiça da rua e levou pro Ibirapuera.
Falou um italiano, "São Paulo é uma barbaria."
Falou um alemão: "Os brasileiros são bárbaros."
Porém Macunaíma não agüentou e gritou, mãos nas costas, pros paulistas de todas as cores e de todos os tamanhos, "A preguiça é essencial para uma civilização tropical como a nossa!"
A multidão apupou e se dispersou pro banco, mercado, correio, armazém.
Macunaíma ficou zombado. Fez rede da bandeira paulista no balcão do Hotel Versailles, se deitou, e começou a mijar quente nos pedestres lá embaixo.
Jiguê, faminto, foi caçar anta à beira do Tietê. Jiguê era muito bobo mesmo.
Thursday, January 20, 2011
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